Quinta-feira, 7 de Abril de 2011

O oracionário mirandês: a língua das orações

[Estudo publicado no jornal Mensageiro de Bragança de 10 de Abril de 2003]

 

 

 

“Ó velhinha santa, minha boa amiga,

Reza o teu rosário, move os lábios teus!...

A oração é ingénua? Vem de crença antiga?

Não importa! reza, minha boa amiga,

Que orações são línguas de falar com Deus!...

Guerra Junqueiro, Os Simples, Lello & Irmão, Porto, 1978, p. 48.

 

 

 

Este texto pretende ser uma modesta e primeira reflexão sobre uma velha afirmação de J. Leite de Vasconcellos e sucessivamente repetida sem contestação, mas também sem demonstração: os mirandeses não rezam e talvez nunca tenham rezado mirandês.

Enunciado o propósito, fica claro que nos interessa, aqui e agora, o oracionário mirandês no seu aspecto cultural. Não que descuremos a essencial manifestação de fé que a oração sempre é, mas essa seria uma reflexão completamente distinta. É o sentido amplo de oração que nos servirá de referência. A pergunta - em que língua rezaram e rezam os mirandeses? -, delimita o nosso propósito, deixando de lado os inúmeros aspectos da chamada ‘piedade popular’, bem como a questão da língua das orações na Idade Média. Este texto vale, portanto, como uma primeira reflexão.

 

 

 

 

 

1. O movimento nacional dos sécs. XV-XVI para “rezar per linguajem”

 

Nos fins do século XV inicia-se em Portugal um movimento para rezar “per linguajem”, isto é, em português. Foi um movimento de grande amplitude e com intentos mais vastos de renovação da Igreja, visando ultrapassar a falta de cultura do clero e transmitir aos fiéis os princípios e mandamentos da doutrina cristã. Vários concílios provinciais realizados em fins do século XV estão na origem ou dão um grande impulso a esse movimento, como os de Braga em 1488, do Porto em 1496 e da Guarda em 1500. No que interessa ao nosso tema, refere a constituição XXX do sínodo do Porto: “por quanto somos ora emformados (...) que muitos freigueses (...) nõ sabem o pater noster nem ave maria nem mays pouco sabem os preçeptos e mãndamentos nem as obras de misericordia nem os pecados mortaaes pollo qual nõ se sabem cõfessar (...), mandamos que daqui em diante todollos abades rectores e capellães das ygrejas do dito nosso bispado (...) ensinem a todollos seus freigueses em modo que o bem possam aprender per linguajem os preçeptos e mãdamentos e peccados mortaaes” (vd. Elsa Maria Branco da Silva, O Catecismo Pequeno de D. Diogo Ortiz, Bispo de Viseu, edições Colibri, Lisboa, 2001, maxime p. 72).  Esta autora, onde pode encontrar-se um tratamento aprofundado do tema, conclui quanto àquele movimento: “No século XV a língua vernácula sofre uma valorização inquestionável em face da língua latina, como o provam as diferentes traduções que entretanto vão sendo feitas. Este fenómeno de publicação e de divulgação de obras em linguagem tem de ser interpretado como consequência da necessidade de afirmação da língua vernácula, pois temos a certeza que neste período de finais da Idade Média se começava a alargar o conhecimento do latim” (o.cit. p. 74).

É dentro deste movimento que devem ser integradas as Constituições Sinodais do Bispado de Miranda, de 1563, elaboradas por D. Julião D’Alva, 3º bispo de Miranda, que prescreviam: “Mandamos a todos os abbades, priores, reitores, curas & capellães deste nosso bispado, que cada um em suas ygrejas, assi nas matrizes como nas annexas, ponham em hũa taboa bem concertada hũa folha que agora mandamos imprimir, em que se contém a doutrina christãa: a qual estará pendurada de hũa cadea posta nas grades ou paredes das ditas ygrejas em altura conveniente: por que todos os que quiserem possam nella ler e aprender a dita doctrina, e pola mesma taboa a possam os ditos curas ensinar”. Os párocos deviam ensinar os moços de 5 a 12 anos “muy de vagar, em voz alta e intelligível, de maneira a que de todos possa ser entendida”. (in J. Leite de Vasconcellos, Estudos de Philologia Mirandesa, I, p.155). J. Leite de Vasconcellos admite tratar-se de disposições similares às de outros bispados mas, para uma região onde o povo falava mirandês, as consequências seriam bem maiores, concluindo: “... fica manifesto que mal poderiam ter chegado até nós orações e rezas em mirandês, se é que anteriormente a D. Julião ellas se usaram nesse idioma” (o. cit. p. 156). E acrescenta, “não sei se em algum tempo as orações foram rezadas em mirandês; o que porém é certo é que há razões históricas, e muito positivas, para se explicar o facto actual (“...de serem as rezas e orações não em mirandês, como se esperaria, mas em português”). São ainda as Constituições de D. Julião de Alva que nos elucidam.” (o.cit. p. 155).

António Maria Mourinho (vd. Terra de Miranda. Coisas e factos da Nossa Vida e da Nossa Alma Popular, ed. Câmara Municipal, Miranda do Douro, 1991, pp. 261) segue a lição de J. Leite de Vasconcellos quanto à língua das orações e quanto às consequências das Constituições Sinodais de D. Julião d’Alva: “A gente da Terra de Miranda, segundo suponho, nunca terá rezado em mirandês. Durante a Idade Média, rezava-se em latim (...)”. Assim, as dúvidas de J. Leite de Vasconcellos (“não sei se em algum tempo as orações foram rezadas em mirandês”) convertem-se em certezas com António Maria Mourinho (“nunca se terá rezado em mirandês”).

Já Domingos Raposo não é tão incisivo, ao constatar a existência de orações em mirandês: “... para alhá de rezar quaije siempre an pertués, tamien ten las sues ouraçones an mirandés” i transcreve uma das muitas versões do “Padre Nuosso Pequenino” e algumas rezas (vd. Domingos Raposo, “Lhéngua Mirandesa – Muôlo de Cultura Biba, in Entre Duas Margens. Douro Internacional, João Azevedo Editores, Mirandela, 1998, p. 68).

As afirmações de J. Leite de Vasconcellos e de António Maria Mourinho, pese embora a grande autoridade destes autores, carecem de ser demonstradas. A constatação de Domingos Raposo, que qualquer mirandês pode corroborar, é incontornável: “existem orações em mirandês”. Mas essa constatação empírica não basta, pois este último autor também conclui que os mirandeses rezam quase sempre em português, isto é, não avança muito em relação às posições de Vasconcellos e de Mourinho. Para poder ir mais longe, impõe-se uma reflexão metodológica e terminológica que permita enquadrar a realidade do oracionário mirandês.

A oração tem de ser inserida na vivência da religiosidade pelas comunidades e pelas pessoas, numa situação em que o sagrado impregna profundamente toda a vida e o agir dos povos. Nesse sentido, é essencial distinguir realidades que não se confundem: a prática colectiva e pública da oração, nas igrejas e sob controlo da hierarquia e da própria comunidade; a prática individual de relacionamento com Deus e os santos através da oração; a prática individual ou colectiva de relacionamento com Deus, com os santos, ou com forças naturais, mas fora do controlo da Igreja e dos seus rituais. Vejamos cada uma das situações.

 

 

2. A oração na liturgia oficial na igreja

 

 

 

As orações ditas nas igrejas ou integradas em ritos do calendário litúrgico consistem, sobretudo, em fórmulas ensinadas através da catequese ou transmitidas oralmente de geração para geração e aprendidas em oracionários, muito em voga em determinadas épocas. Essas orações são ditas em português, desconhecendo eu qualquer excepção a essa regra. A Igreja adoptou claramente e de modo muito forte a língua portuguesa e esta foi imposta às pessoas como “língua de falar com Deus”. Tudo indica que assim será desde os sécs. XV-XVI, isto é, desde o início do movimento nacional para rezar “per linguajem”, que nunca teve em conta a especificidade linguística mirandesa, até porque, tudo indica, esta não seria considerada como uma verdadeira língua. Tal facto desencorajou a elaboração de orações para dizer na igreja e em público, pois tal nunca seria aceite. Quanto ao que terá acontecido antes dessa data, sobretudo durante a Idade Média, é assunto que deixamos para outra ocasião.

Durante muito tempo, sobretudo nos séculos XVIII e XIX, circularam livrinhos com fórmulas de orações adequadas para todas as ocasiões da vida, ao longo do dia e do ano. Essas orações eram aprendidas por algumas pessoas que depois as divulgavam e que a tradição incorporou e adoptou, seleccionando aquelas a que o povo mais se afeiçoou por razões de facilidade ou de utilidade. António Mourinho dá o exemplo de tiu Domingos Cangueiro, de que eu próprio muito ouvi falar, como uma dessas pessoas que eram um repositório de orações (vd. Cancioneiro, cit., p. 285).

A repetição dessas fórmulas era considerada essencial, sendo muitas vezes mecânica na resposta à pessoa que conduzia a oração e, por vezes, deturpado o seu conteúdo por falta de entendimento de algumas palavras. Parece-me interessante referir que a pessoa que conduzia as orações públicas, por exemplo a velar um morto, apresentava as intenções dessas orações ou fazia a ligação entre elas sempre em mirandês, mas, mal iniciava a oração, passava ao português. Por vezes, nas orações públicas, pouco mais se ouvia que clamor que ressoava repetidamente pelas naves das igrejas ou nas casas. Muitas dessas orações concediam indulgências ou, se ditas um certo número de vezes ou em certos dias, concediam determinadas graças, o que era um factor essencial para serem ditas e repetidas. Por isso, sendo as orações aprendidas na língua portuguesa, esta passava a fazer parte essencial do formulário e devia ser mantida, como se o poder da oração também residisse nas próprias palavras.

Sendo a missa em latim, algumas pessoas rezavam baixinho certas orações, ensinadas para momentos próprios, ao ajoelhar-se, ao elevar da hóstia e do Cálice, etc. Várias dessas orações chegaram até nós e ainda hoje são ditas por pessoas mais velhas. Noutros tipos de rituais, que não a missa, como novenas, via-sacra, o “rosairo”, as orações ou respostas do povo ao sacerdote eram também em português. Igualmente parecem ter sido rezadas em português as duas orações mais populares, o Padre Nosso e a Ave Maria (o chamado Padre Nosso Anteiro), mas, nesse caso, dada a frequência com que eram rezadas, saía um português amirandesado, variando conforme as pessoas. Lembro-me da minha avó Ana a rezar assim (ainda nasceu no século XIX e morreu quando eu tinha 19 anos), pois rezar em português exigia um esforço muito maior, dado o menor domínio da língua.

Em conclusão, nas situações referidas neste ponto, a língua era usada em face de elementos estranhos à comunidade e a regra, nesses casos, mesmo que não se trate de rezar, é sempre o uso da língua portuguesa. A Igreja, encabeçada pelo padre que, em regra, não falava mirandês, era objecto de uma relação linguística similar à estabelecida com outras instituições públicas exteriores à comunidade, como as estaduais.

 

 

 

 

 

3. A oração como prática individual

 

 

Como é sabido, a oração na igreja ou ligada aos ritos do ciclo cristão não esgota as ocasiões em que se rezava, embora, à medida que recuamos no tempo, mais importante se revela o papel do ‘ministro’ no contacto com Deus, em nome de todo o povo. Dado que o sagrado impregnava de modo profundo a vida das pessoas, todas as ocasiões tinham orações a elas ligadas, tendo chegado até nós um grande conjunto de orações não oficiais, recitadas colectiva ou individualmente. Mesmo muitas pessoas que não frequentavam a igreja também rezavam. É frequente ouvir expressões como “You nun bou a missa, mas acá tengo la mie debocion.” Há algo de muito imediato, de urgente e de concreto nessas orações individuais, a contrastar com o carácter mais genérico e abstracto da maioria das orações referidas no ponto anterior que não contêm apenas súplicas, mas incorporam louvores, acções de graças, etc.. Nessas ocasiões as pessoas estão mais dispostas a fazer comércio através de promessas do que a rezar ou a confiar exclusivamente  nas palavras da oração, embora esta acompanhe sempre a prática, assente no princípio “do ut des” (dou para que me dês).

Há um texto impressionante que nos é apresentado por A. M. Mourinho como testemunho pessoal (Terra de Miranda..., cit., p. 367) nos seguintes termos: “Nas igrejas em que não há altar das almas, são os votos e orações pelos mortos dirigidos à Santa Cruz. Uma imagem grande do Crucificado segue à frente da cruz paroquial nos acompanhamentos fúnebres. Recordo-me de ter ouvido num enterro, em Cércio, ao chegar a Santa Cruz à casa onde estava o defunto, uma velha mirandesa dorida pela morte do marido, levantando as mãos ao céu a clamar em mirandés: Ah Santa Cruç gloriosa, acumpanhai la almica de l miu home pa l reino de la Glória!... Ah Pai de mezericórdia, nun deixeis la almica de l miu home caier n’einfierno!...”. Em rigor, estamos perante uma verdadeira oração e não perante um pranto dado que este se traduz em fórmulas previamente preparadas e muitas vezes ditas por profissionais pagas para chorar. Eu próprio assisti diversas vezes a situações como as que A. M. Mourinho relata, em que a língua utilizada era sempre o mirandês. Refiro este exemplo como paradigmático relativamente às orações individuais das pessoas, com ou sem exteriorização pública.

No seu dia a dia, os mirandeses sempre se referiram a Deus na sua língua, seja ao cumprimentar as outras pessoas (Dius mos dé bunos dies. Bunos dies mos dé Dius), ao lembrar os mortos (Que Dius le perdone! Que Dius l tenga an çcanso!), seja ao dirigir-se a Deus, à Virgem ou aos santos em momentos de aflição (Ah Dius!, ajuda-me; Ai bala-me Dius!; Ai, bala-me la birge Santíssima!; Ai Nuossa Senhora m’acuda!). Embora não estejamos perante orações, estas fórmulas e outras semelhantes mostram a existência de uma referência a Deus em mirandês. O mesmo vale para os nomes dados a Nossa Senhora e aos santos, sempre tratados em mirandês: Nuossa Senhora de l Naso, de la Lhuç, de l Monte, de l Rosairo, de l Sartigalho; San Jesé, San Juan, Sant’Antonho, Santa Bárbela, Sant’Eistéban, Santa Marina, Santa Luzie, etc. Este facto ajudar a explicar que os mirandeses nunca tivessem deixado de rezar em mirandês e a importância dos santos como alguém considerado simultaneamente mais próximo das pessoas e de Deus. Isso demonstra igualmente que as pessoas encaram a sua língua como instrumento adequado para se dirigir a Deus ou aos santos ou para invocar o seu nome. Quando faltam elementos de controlo ou inexistem outras razões que imponham a língua portuguesa nas orações, a língua usada tende a ser o mirandês como língua mais natural e usada no dia a dia. Merecem tratamento os problema psicossociológicos resultantes dos modos de tratamento não uniformes usados com Deus, mas não podemos tratá-lo neste espaço.

As orações públicas rezadas fora da igreja, por exemplo no fim de uma refeição de festa, eram sempre conduzidas por uma pessoa que se considerava que sabia rezar: é ‘a pessoa que mandava rezar’. Alguém diz: “Bá, quien manda rezar?” E logo uma pessoa se oferecia ou era indicada. Essa pessoa dirigia a oração, fazendo as encomendações pelos mortos, dizendo as intenções da oração, pelas colheitas, pela saúde, etc. o que já era uma verdadeira oração, sempre dita em mirandês. Tudo termina com o chamado Padre Nosso Anteiro (Padre Nuosso, Pan Nuosso, Abe Marie i Santa Marie), dito nun português muito amirandesado. Este Padre Nosso Anteiro tinha autonomia face às outras orações, pois era uma espécie de chave com que terminavam quase todas as orações, e era dito ao toque das Trindades, ao passar no campo junto de uma cruz, depois das refeições, etc. Dizem as pessoas mais velhas para clarificar: “nós poniemos todo al nuosso son” (punhamos tudo à nossa maneira). Por exemplo, uma pessoa entrava na igreja e benzia-se com água benta dizendo: An nome de l Pai, de l Filho i de l Sprito Santo.

Podemos concluir que os mirandeses, quando assumem a oração como um acto individual, tendem a rezar em mirandês, e nesta língua se dirigem a Deus, a Nossa Senhora e aos santos, mesmo quando usam fórmulas prévias e ainda que tenham de as traduzir, não se importando com o desacerto da rima. Quando a oração é pública, mas fora da igreja, e ‘quem manda rezar’ é um mirandês, a oração é sempre em mirandês, rematando com uma fórmula, em regra o Padre Nuosso Anteiro, numa mistura das duas línguas, a tender mais para uma ou para outra conforme as pessoas.

Não posso deixar de referir que há um número significativo de orações em castelhano que também são recitadas, todas se caracterizando pela sua rima expressiva e cantante, que sónan bien, como me disseram algumas pessoas, e são ditas como se fossem um romance não cantado. Na maioria dos casos, tal como referimos para as fórmulas oracionais em português, eram ditas com uma grande quantidade de palavras mirandesas.

 

 

 4. O poder das palavras

 

 

Há muitos casos de orações dirigidas a Deus e aos Santos em que se atribui um valor específicos a uma oração concreta, com aquela fórmula, ainda que deturpada em muitos dos casos. Há mesmo orações que exigem determinados ritos, por exemplo rezar três vezes ao dia; rezar às sextas-feiras; rezar ao deitar ou ao levantar, etc. Há uma oração apropriada para cada momento e para cada situação. De entre estes casos impressionam particularmente os exemplos de orações em português que terminam com fórmulas explicativas dos seus efeitos. Estas fórmulas não são específicas do oracionário mirandês. O que as caracteriza é serem em língua mirandesa. São fórmulas que já não fazem parte da oração, e no entanto são ditas sem respirar após ter acabado a oração. Vejamos alguns exemplos. Uma oração a São Bartolomeu recolhida em Sendim termina assim (vd. Carlos Ferreira, in www.mirandes.no.sapo.pt): “Quien esta ouracion dezir trés bezes al die, ancuntrará las puortas de l cielo abiertas i las de l einfierno nunca s’abriran”. Numa outra oração recolhida no mesmo local: “Quien esta ouracioun dezir todas las sestas de l anho, sacará ua alma de pena i la sua de l pecado”. Nalguns casos a fórmula final é ainda mais enfática: “Quien la sabe que la diga/ Quien nó, que l’aprenda,/ A la hora de la sue muorte, / Sue alma se l’arrependa (vd. António Maria Mourinho, Cancioneiro Tradicional e Danças Populares Mirandesas, 1º volume, Miranda do Douro, 1984, p. 113). Ou ainda esta variante, que me habituei a ouvir desde criança: “Quien la sabe que la diga/ Quien nó que la deprenda, / Q’a la hora de la sue muorte/ La sue alma nun se perda.” A língua usada com estas e outras fórmulas semelhantes mostra que as pessoas, mal terminava a oração propriamente dita, voltavam à sua língua, o que é bem revelador de que a língua utilizada era aquela em que as orações tinham sido previamente aprendidas.

O povo sempre teve o gosto das fórmulas oracionais complexas, dramáticas, com o seu quê de teatral, ainda que de origem erudita, tal como sempre foram apreciadas as pessoas que sabiam de cor essas orações. Eu próprio ainda hoje tenho bem presente a profunda impressão que, em criança, me causava o “Triste Dia” (tradução portuguesa do “dies irae”), rezado/declamado nos três dias em que se rezava nos “rosairos de belada” após a morte de uma pessoa e em casa dela. No comentário que faz a esta oração, António Maria Mourinho reflecte bem esse ambiente: “O fundo dramático de medo e espanto que domina também esta tradução do Dies Irae (...) caiu muito bem nas almas destes povos, por isso eles a conservam intacta até para além dos nossos dias.” (vd. Cancioneiro..., cit., p. 285). Todo este ambiente incentivava a que as orações fossem ditas na língua em que foram aprendidas, o português.

Há um conjunto de outras orações, geralmente ditas em mirandês, em que o poder das palavras é igualmente essencial. Muitas delas são classificadas como rezas e benzeduras, que têm muita da sua eficácia agarrada ao ritual das palavras, ditas de certa maneira e por uma certa ordem, bem como aos sinais feitos enquanto se diz a oração. O seu texto escapa a um controlo oficial, estando a língua em que são ditas exclusivamente dependente de quem as diz. Centrando a atenção nestes casos, encontramos orações para uma boa cozedura do pão, para quando se coloca uma galinha a chocar os ovos, orações a Santa Bárbara contra as trovoadas, orações a Santo António quando se perdem coisas ou para guardar os gados, orações para obter a cura de doenças de pessoas ou animais, etc. De todas essas orações circulam inúmeras versões em mirandês, mas podemos encontrá-las noutras regiões do país, e mesmo na região de Miranda, em português.

 

 

 

 

 

5. O oracionário mirandês 

 

As orações transmitidas pela tradição oral, independentemente da sua origem, fazem parte da literatura oral e são um dado cultural e identitário da mais alta relevância. Relativamente ao oracionário em mirandês, as recolhas efectuadas até agora são ainda muito pouco significativas, talvez devido à pouca importância que se tem dado a essa parte da literatura oral. Parece-me essencial colmatar essa lacuna e trazer à luz do dia o essencial do oracionário mirandês, independentemente da língua em que as orações são rezadas.

A mais importante recolha até agora efectuada foi publicada por António Maria Mourinho no Cancioneiro e Danças Tradicionais Mirandesas, vol. I (pp. 257-276), onde são publicadas à volta de 40 orações, das quais só uma é em mirandês, dedicada a Santo António (p. 259-260) e outra é em mirandês e em castelhano (p. 122-125). Alguns outros elementos são publicados em outras obras do autor, que deu grande importância à religiosidade do povo mirandês, embora sejam muito poucas as orações recolhidas (ver, em particular, Terra de Miranda... cit.)

Domingos Raposo (“Lhéngua Mirandesa – Muolo de Cultura Biba”, in Entre Duas Margens. Douro Internacional, João Azevedo Editores, Mirandela, 1998, p. 68) publica uma versão do “Padre Nuosso Pequenino”  e uma oração para rezar quando se mete o pão no forno.

Em Lhiteratura Oral Mirandesa. Recuôlha de textos an mirandés, Granito Editores e Livreiros, Porto, 1999, coord. por António Bárbolo Alves, é publicada uma oração em mirandês e duas benzeduras em português (vd. p.61).

Carlos Ferreira publicou cinco orações recolhidas em Sendim (www.mirandes.no.sapo.pt), quatro em mirandês e uma em mirandês e castelhano.

Foi também publicada uma oração a Santa Bárbara, em mirandês, no sítio da internet www.eb2-miranda-douro.rcts.pt/mirandes/

Numa recente recolha de literatura oral efectuada em Malhadas por Duarte Martins (no prelo) são também apresentadas várias orações recolhidas da tradição oral, todas em mirandês. Algumas são versões em mirandês de orações já publicadas por António Mourinho, mas em português.

Eu próprio tenho recolhido em Sendim, de forma não sistemática, algumas orações até agora não publicadas, mas que tive em conta para este estudo.

 

Do que fica dito, com base nas recolhas publicadas e em inquéritos pessoais realizados, não se comprovam as afirmações de J. Leite de Vasconcellos e de António Maria Mourinho quanto à língua usada pelos mirandeses para rezar. O que se pode concluir é, afinal, bem simples, embora desconcertante: o uso da língua em relação às orações não difere, em grau, do uso da língua em relação às outras situações da vida e à literatura oral em geral. Assim, quando usou a célebre e hoje ultrapassada fórmula de que o mirandês era a língua do campo, do trabalho e do amor, J. Leite de Vasconcellos devia ter acrescentado, glosando a belíssima expressão de Guerra Junqueiro, que o mirandês também é uma língua de falar com Deus. Se tivesse percebido isso, talvez encarasse duma outra forma a capacidade de resistência do mirandês.

 

Amadeu Ferreira

 

 

 

puosto por fracisco n. às 16:03
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Segunda-feira, 7 de Março de 2011

Modos de tratamiento ne l Auto de dom André

 

 


[Este pequeinho studo corresponde a la 3.ª parte dua palhestra feita an Miranda de l Douro, ne l Cumbento de ls Frailes Trinos, an júlio de 2005, a cumbite de l dr. Domingos Raposo. Eiqui se deixa tai i qual cumo nessa altura fui apersentada, deixando-se bien claro l sou carátele datado.]

 

 

 

L Auto de Dom André, de que nun conhece l outor, pertence a la scuola de Gil Vicente i haberá sido screbido ende puls meios de l seclo XVI[1]. Pa l que aqui mos anteressa hai que dezir que l outor faç ua çtinçon bien çclarada antre l pertués falado pulas pessonas de l campo i la lhéngua fidalga. La defrença ye tan grande que l outor pon ua de las figuras de campo a dezir que l fidalgo fala an lhatin i el nun l’antende. De modo defrente de outros quelóquios daquel tiempo, este ye solo screbido an pertués. L que anteressante ye ber que hai muita palabra i algues spressones desse quelóquio que inda hoije eisísten an mirandés, que tanto correspónden a la fala fidalga cumo a la fala que ye apersentada cumo charra, falada puls aldeanos. Ye anteressante dezir que nin ua de las pragas, ou spressones populares ou palabras yá anton cunsideradas arcaicas ou berbos rústicos, nada desso lo achamos hoije an mirandés[2]. Neste quelóquio aparécen uito ditos dezideiros i nanhun deilhes lo achamos hoije an mirandés[3], mas aparece alhá un remense, l Conde de Almanha, que quedou subretodo an Trás de ls Montes i na Tierra de Miranda.

 

Para alhá de algues palabras i spressones, poucas, l mais anteressante nua lheitura mirandesa de l Auto de Dom André ten a ber cul modo de tratamiento de respeito, dado pulas figuras de l campo als fidalgos. I esse modo de tratamiento ye, quaijeque siempre, la treceira pessona de l singular, tal i qual cumo inda hoije se passa ne l mirandés de Sendin. Mas essa forma de tratamento tamien ye ousada antre fidalgos, muita beç acumpanhada de la palabra «senhor». L normal ye que ls fidalgos antre eihes ou las pessonas de l campo antre eilhas solo úsan l tratamiento por «bós», na segunda pessona de l plural, aparecendo quaijeque siempre cumo un tratamiento antre eiguales. L tratamiento por «tu» solo ye ousado pa ls anferiores, assi i todo scassas bezes.

Bamos a ber, an special, l modo de tratamiento pornominal – ele / ela – an que l berbo bai pa la terceira pessona de l singular.

 

L Ratinho, que ye d’ourige de l campo[4], derige-se a la Senhora assi:

Eu a servirei, senhora

como ela bem verá. (vs. 335-6)

 

Mas la mesma figura, noutras falas cula mesma Senhora usa l tratamento «vós» cul berbo na segunda pessona de l plural. Ye tamien por «vós» que trata l armano de l, que faç la figura de l Pajem. Mas lhougo apuis, l mesmo Ratinho, deregindo-se a Ilária, ua criada que el pon arriba del, diç:

 

Mão são, Senhora, os danos

que por ela passo e dores

que [me] secam os tutanos.

Ela tem logo assi un jeito

de ser mais dura que seixo... (771-75)

 

Que quero? Pesa da morte,

que saiba que são eu seu. (806-807)

 

Bofé, Senhora Ilária,

se ela ora não zombasse.

Eu lhe fico que ganhasse

indulgência plenária,

se me ora abraçasse. (814-15)

 

Senhora, não se vá a zombar! (823)

 

Mas las mesmas bacilaçones desta figura de l Ratinho quanto al modo de tratar, tamien se repíten an relaçon a Ilária, pus la trata bárias bezes por «vós» na segunda pessona de l plural (786-803, 811-812, 829). L mesmo Ratinho deregindo-se al amo, l Fidalgo, torna al tratamento na terceira pessona:

 

Ele, di-lo, assi viva ele,

como ele o quer dizer. (1313-14)

 

Ua outra figura de l campo ye l Vilão. Tamien usa bárias bezes l tratamento na terceira pessona al deregir-se al Fidalgo. Yá a la tie del trata-la por «vós», i l mesmo faç al filho Fernando, anque a las bezes lo trate por tu[5], i este trata tamien l pai por «vós»[6]. Diç-le l Vilão al Fidalgo:

:

Cuidei que era com’essa

em que ele, senhor, sê. (523-4)

 

Ele, senhor, o há-de dizer

e, despois que o eu ouvir

então lhe hei-de responder. (537-39)

 

Fala homem assi ao desdém,

ele, senhor, há-de perdoar,

se lhe homem não falar bem. (542-44)

 

Ama, senhor, e de quê?

Quant’a eu, estou enleado.

Diga-me, por sua fé, porventura Vossa Mercê

ele de ser seu criado? (565-9)

 

Fale-me ele português,

porque eu não sei latinar. (573-4)

 

Senhor, ele há-de perdoar,

eu hei-de ficar também,

se ela houver de ficar. (612-14)

 

Faço-lhe também saber,

Senhor, que é já casado

e sabe tão bem reger

ua casa, que pasmado

ficará, só de o ver. (1232-33)

 

Tamien la criada Ilária usa l tratamento na terceira pessona, al menos dues beszes, cun Belícia, armana de la Senhora:

 

... e Dom André há-de ter

sempre dela essa sospeita.... (690-91)

 

... Minha senhora a chama,

não sei o que lhe quererá. (708-709)

 

La figura de l Veador, amportante funcionário de l fidalgo, tamien usa algues bezes l modo de tratamento na terceira pessona, deregindo-se al Fidalgo:

 

Não há i mais que deter

bem pode partir, senhor,

na hora qu’ele quiser. (vs. 1537-39).

 

L mesmo Veador trata assi, ua beç, al Ratinho, mas de caçuada:

 

Porque não vindes, Vilão?

É ele logo, senhor?

 

Tamien hai un uso, anque ralo, de la 3ª pessona de l singular antre fidalgos i por eilhes. Diç la Senhora pa l Fidalgo, tiu deilha:

 

Se bem lhe parece, senhor,

eu são desse parecer. (31-32)

 

Belícia, que ye fidalga, trata a Dom Belchior, que, sin ser fidalgo, ye apersentado cumo asno i bien falante, por «vós», mas algues bezes tamien usa la treceira pessona de l singular:

 

A mercê que me fará,

se algua lhe mereço:

por aqui não passará

e, fazendo-a agravar-me-á. (949-952)

 

 

Eiqui chegados, hai que dezir que este special modo de tratamento nun ten sido zambolbido puls outores que desse assunto ténen tratado. An special CINTRA nada diç subre el, mesmo quando trata de las formas mais antigas de tratamento an pertués. Ne ls squemas que esse outor apersenta de la eibeluçon de las formas de tratamento, diç que l tratamiento an que ye ousada la 3ª pessona de l singular de l berbo solo aparece de l seclo XVIII an delantre cumo forma de tratamiento de respeito generalizada[7]. I mesmo ende nunca aparece l uso de ls pornomes personales «ele» i «ela», mas solo la terceira pessona de l singular de l berbo apuis de ciertas spressones (vossa mercê, vossa senhoria, vossa alteza, vossa majestade, vossa excelência, etc.)[8] ou apuis de ciertas palabras (o senhor, o senhor doutor), ou ligado a ciertos nomes (o António, a Maria, o pai, a mãe, o meu amigo, o cavalheiro, etc) (CINTRA, 107-108). Ora, l Auto de Dom André amostra que l tratamento de respeito na terceira pessona de l singular yá era ousado ne l seclo XVI pulas classes populares, anque an alguns de ls casos apersentados se sínta que se ten na cabeça la spresson Vossa Mercê, subretodo quando se usa l lhe[9], i tamien se bei que esse modo de tratamiento inda nun era giral pus hai inda algue bariaçon na forma cumo las figuras lo úsan. Assi i todo tenemos un uso çclarado de l berbo na terceira pessona de l singular, i tenemos algo que nunca passou pa l pertués padron: l uso de ls pernomes pessonales «ele» i «ela», pornomes stranhos porque la regra ye que séian ousados para referir ua terceira pessona cun quien nun se stá a falar. Ye esso que ye nuobo i ye esso que se manten ne l tratamento de respeito ne l mirandés de Sendin. Cumo se splica esta eibeluçon.

 

L que talbeç se puoda dezir ye que l tratamento na terceira pessona nun será de antes de l seculo XV-XVI. Parece que solo por essa altura se ampeçou a ousar l tratamento de Vossa Mercê i Vossa Senhoria[10], que parece haber stado na ourige de l tratamiento na terceira pessona de l singular. Cuido que haberá sido esta quelocaçon de l berbo na terceira pessona de l singular que haberá traído l uso de ls pornomes pessonales que le correspónden, «ele» i «ela». Tamien me paredce que essa correspundéncia ten ua marca popular ne l uso destes pornomes: purmeiro tenerá habido ua sempleficaçon deixando-se de ousar las spressones Senhor, Vossa Mercê, Vossa Senhoria, i ousando-se solo l berbo na terceira pessona de l singular; apuis, stando l berbo el solo, bundou poner-le l pornome cierto que le sirbe de sujeito a essa terceira pessona de l singular. Pássa-se, assi, de la forma berbal pa la forma pornominal de tratamiento. Podemos dar este eisemplo que amostra la eibeluçon habida: Senhor, perdoe-me Vossa Mercê > perdoe-me > ele perdoe-me. Deste modo, cuido que stará achada nun solo la ourige desta forma de tratamiento cumo las sues caratelísticas speciales. L Auto de Dom André ye un decumiento fundamental a marcar esta eibeluçon, you al menos nun conheço outro.

 

Amadeu Ferreira


 

 

 



[1] Solo se tubo coincimiento deste quelóquio an 1910, altura an que fui achado por Menéndez Pidal na Biblioteca Nacional de Madriç. Fui publicado an 1922 por D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, an Madriç.

[2] Deixo eiqui ls seguintes eisemplos: a) de pragas de fondo relegioso: Esse é o demo, samica! (v. 275); que o vivo demo (v. 451); ó demo que eu a dou (v. 474); oh, renego do diabo! (v. 483); Pela corpa de São Fernando (v. 488); comendo ao demo (v. 515); como demo lhe diria? (v. 744); rogo eu a Deos que má dor (v. 826); comendo à demo, cortiço (v. 845); que são piores que o demo (v. 1034); comendo ao demo a relé (v. 1227); qu’é pior que o Antecristo (v. 1245); guardai-vos do diabo (v. 1255); b) outras pragas: pesar de minha mãe torta! (v. 458); juro ao corpo de mi (v. 478); oh, pesar não sei de quem! (v. 739); pesa da morte (v. 806); pareço vossa mãe torta (v. 1222); c) formas arcaicas ousadas pula giente de l campo: abofé, bofá, bofé, bofás, eramá, padar, sicaes, samicas, samica; desengula, fasquer, semelhar, trager; d) saludos: mantenha Deus Sua Mercê (vv. 509, 1377); mantinha-vos Deus (v. 1416).

L mesmo bal para outras palabras i spressones de ls populares. L mesmo se passa an Camões, por eisemplo quanto a la fala de las classe mais baias (ANF,  Feliseu i Brómia). AES: Oh! fideputa bargante! (80); pesar de meu avô torto (87)

[3] Quem honra desejar, / convém-lhe sempre d’estar / ... / sem ver, ouvir, nem falar (vv. 396-399); Bem segurais vossa nao / antes que saia da barra! (vv. 545-546); cantando traz homem ora / a sua casa com que chora (vv. 1148-1149); que poucas vezes se alcança / aquilo que é desejado (vv. 673-674); porque o mal, enquanto é novo, / é mais fácil de curar (vv. 1270-1271); que contra fortuna e amor / não há i força nem poder (vv. 1280-1281); quem bem ama de presente / em ausência sempre ama (vv. 1285-1286); que quando os olhos não vêem / não deseja o coração (vv. 1290-1291); quem quiser amigos peite / e senão não os terá (vv. 1489-1490)

[4] Nun ye fácele saber an que region de l paíç l outor pon las pessonas de l pobo que úsan essas formas de tratamiento. Fala-se an Lamego, Mora (Alanteijo? vs. 1346), Tojal. Mas las personaiges que assi fálan son apersentadas cumo sendo de Tojal, l que serie tierra acerca de Lisboua (adonde todo se passa, pus Dom André poderie haber ido a falar cul rei, vs. 297-299)[4]. Mais alantre l Ratinho fala dun tal Juan da Lousa, l que puode ser tierra inda hoije cun esse nome a seguir a Loures. I el mesmo se scapou para Lisboua para fugir a la justícia. Por esso nun habie de ser loinje de Lisboua. Mas l mesmo Ratinho i l armano, l Pajem, diç que ls pais móran acerca de Lamego (v. 259). Yá Fernando bai a besitar l pai, que ye criado de l fidalgo Dom André i parece ser de acerca. Parece que ls personaiges populares seran, ls mais deilhes, de la chamada «region saloia». Mais que la lhéngua dua sola region, talbeç stéiamos delantre de tipos tal cumo se passa an Gil Vicente, cumo diç Paul Teyssier.

[5] CINTRA (1986, 55) diç que an Gil Vicente l home i la mulhier siempre se trátan por «vós» i que ls pais trátan ls filhos por «tu».

[6] CINTRA (1986, 56) diç que an Gil Vicente ls filhos trátan siempre als pais por «vós».

[7] Alguns casos ralos yá aparécen zde l seclo XIV, cumo formas de tratamiento nominales (CINTRA, 17-21)

[8] An nota al Auto dos Anfatriões de Camões, diç H. Cidade a perpósito de uso de tratamiento cul berbo na terceira pessona: “Não devia – subentende-se – Vossa Mercê. Eis a explicação do tratamento na 3ª pessoa do singular, frequente nestes autos” (p.2). I mais alantre - Anfatrião: Avós quem vos convidou; Belferrão: Sósia por cuidado seu – diç H. Cidade (p. 64): “seu (de Vossa Mercê)”

[9] Maria José Palla, que apersenta la obra, nada diç subre l’amportança deste modo de tratamiento, anque le faga ua brebe referéncia (nota, pp. 101: “Ela – forma de cortesia da terceira pessoa que designa aqui uma segunda pessoa, ‘Vossa Mercê’.) Mas cuido que esso solo ye claro an alguns casos, subretodo quando se usa l pornome lhe.

[10] Coincemos bárias lhonas desse tiempo, reinado de D. Juan III, an que l tratamento por «vós» yá ye cunsidrado ua oufénsia i falta de respeito por ciertos fidalgos, mas esse pensar inda nun serie giral senó ls casos nun serien apersentados cumo lhonas. Nas cortes feitas por Don Sabastian houbo un fidalgo que fura gobernador de la Índia, Martim Afonso, que tratou ls delgados por «vós outros» i un deilhes, que era de Lamego, respundiu-le assi: “Vós outros não estão aqui, nem Martim Afonso está na Índia” (SARAIVA, 1997, 152, 393-394, 442).

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Quinta-feira, 3 de Março de 2011

Dues notas culturales sacadas de ls quelóquios de Luís de Camões, cun antresse pa l mirandés

 

[Este pequeinho studo corresponde a la 2.ª parte dua palhestra feita an Miranda de l Douro, ne l Cumbento de ls Frailes Trinos, an júlio de 2005, a cumbite de l dr. Domingos Raposo. Eiqui se deixa tai i qual cumo nessa altura fui apersentada, deixando-se bien claro l sou carátele datado.]

 

 

 

1. Caminos possibles pa l studo dun porblema

 

Cumo studar ls porblemas que pon la passaige de l pertués a lhéngua anstitucional na tierra de Miranda i las anfluenças que nessa altura tubo subre l mirandés, subretodo quanto a las heipóteses puostas nun outro studo? Cuido que un modo de tartar l porblema será acumparar la lhéngua mirandesa cula lhéngua pertuesa nessa altura, subretodo ne l modo cumo esta mos aparece ne ls scritos de l tiempo, an special aqueilhes que mais anfluença puoden tener nas pessonas. Ende cuido que hai que çtinguir dous tiempos: l tiempo an que la lhéngua pertuesa inda nun habie sufrido la reboluçon que le bieno culs studos houmanistas; l tiempo an que la lhéngua pertuesa sufriu las grandes streformaçones que le bénen cul houmanismo, subretodo apuis de meios de l seclo XVI. Neste studo hai que ir cun muito cuidado i siempre trocendo las narizes als resultados a que se chegue. Cumo tal, inda hoije nun se sabe bien cumo era l pertués stramuntano nesse tiempo i possiblemente nunca se benerá a saber.

Dezido esto, nun será defícele antender que l que eiqui se faç ye solo l ampeçar dun camino, talbeç inda mais ua antençon do que l própio ampeçar, que quedará para apuis de studos mais lhargos, feitos cun mais outores i agarrando outros tiempos. Eiqui tenerá un lhugar amportante l studo de la lhéngua an Gil Vicente, mas tamien de outros outores que benírun antes del i doutros que benírun apuis[i].

Ye esso que eiqui fago: apersentar quatro quelóquios lidos dun punto de bista mirandés, quier dezir, acumparando las questumes i outros dados culturales cula cultura mirandesa i acumparando la lhéngua desses quelóquios cula lhéngua mirandesa. Este método ye algo tolhido puis la lhéngua mirandesa que coincemos ye la de agora i nó la daquel tiempo. Tengo cuncéncia de la manqueira de l método i por esso tamien tengo cuncéncia de l balor lhemitado de alguns resultados a que chegue.

Scolhi[ii] ls trés quelóquios screbidos por Luís de Camões – Auto de El-rei Seleuco, Anfatriões i Filodemo – i outro de outor çcoincido, mas pertenciente a la scuola de Gil Vicente, chamado l Auto de Dom André. Todos esses quelóquios haberan sido screbidos ende al redror de meados de l seclo XVI, i essa andicaçon bonda, pus ls specialistas inda hoije çcúten datas mais ciertas. Las notas de lheitura que apersento nun ténen an cuonta se esses quelóquios fúrun ou nó repersentados an Miranda, anque sábamos que eiqui fúrun repersentados alguns outores de la scuola de Gil Vicente cumo Baltasar Dias, anque talbeç esso tenga ampeçado mais tarde (Valdemar FERNANDES, 2000, 161). Por agora, anteressórun-me esses quelóquios cumo decumientos que mos aperséntan partes amportantes de la cultura i de la lhéngua desse tiempo ne l que era l centro cultural de l paíç, Lisboua i la corte de l Rei.

De l Auto de El-rei Seleuco bou a tirar dues refréncias que me parécen antressantes: la dança de spadas i l'antroduçon als quelóquios populares; de l auto de ls Anfatriões bou a falar de la cantiga Dongolondron; de l Auto de Dom André çtacarei l modo de tratamento de respeito ousado por ciertas pessonas de l pobo; de todos ls quatro quelóquios sacarei algues caratelísticas de la lhéngua, subretodo ciertas spressones ou modos de dezir i algun bocabulairo, relacionado todo esso cula lhéngua i ciertas partes de la cultura mirandesa. Mais que cunclusiones deixarei algues notas de lheitura, mui suoltas.

 

 

 

2. Camões i la dança de spadas

 

L quelóquio de El-Rei Seleuco ten a modo ua antroduçon al quelóquio para fazer rir ls que stan a ber, cuntando lhonas i arremedando las repersentaçones populares desse tiempo: “temos cá auto com grande fogueira” (p. 79), an que las pessonas s’ajúntan uas anriba las outras para ber. L ton ye de arremedo i amostra que esse modo de fazer ls quelóquios yá nun ye de l gusto de la Corte i de las pessonas mais cultas. Até zomba cul modo cumo se dízen las falas: “...não há tal vida como ouvir um vilão que arranca a fala da garganta, mais sem sabor que ua pera-pão, e ua donzela que vem mais podre de amor, falando como apóstolo[iii], mais piedosa que ua lamentação” (p. 83), l que parece apuntar para ua declamaçon cumo inda se faç an mirandés. Ye l que Duarte Ivo Cruz chama «a desclassificação das comédias» que tamien se bei an António Ribeiro Chiado (Duarte Ivo CRUZ, 2001, 71). Ende se passa l que l mesmo outor chama “simulação de teatro dentro do teatro”[iv].

Ye al acabar essa antrada que se diç l seguinte:

“Mas em breves palavras direi a Vossas Mercês a suma da obra: ela é toda de rir, do cabo até a ponta. Entrarão logo primeiramente quinze donzelas que vão fugidas de casa de seus pais, e vão com cabazes apanhar azeitona; e trás elas vêm logo oito mundanos, metidos em um covão, cantando: Quem os amores tem em Sintra; i despois de cantarem farão ua dança de espadas, cousa muito pera ver. Entra mais El-Rei D. Sancho, bailando os machatins, e entra logo Caterina Real com uns poucos de parvos nua joeira; e semeá-los-à pela casa, de que nascerá muito mantimento ao riso. E nisto fenecerá o auto, com música de chocalho e bozinas, que Cupido vem dar a ua alfèoleira a quem quer bem; e ir-se-ão Vossas Mercês cada um pera suas pousadas, ou consoarão cá connosco disso que aí houver.”

La referéncia mais anteressante ye l falar na «dança de spadas», dando-mos alguns pormenores anteressantes[v]: diç que ye dançada por uito homes (oito mundanos); i que ye «cousa muito pera ver»; ls dançadores son apersentados de um modo cómico, pus ban «metidos em um covão» que ye un cesto de bimes que era ousado para caçar peixes; I ban todos cantando ua cantiga, Quem os amores tem em Sintra. Nada mos diç se la dança ye acumpanhada cun algun strumiento ou se eilha ye feita cunsante las cantiga de ls própios dançadores. Talbeç el nun steia preacupado cun esso, pus l anúncio de la dança ye solo para rir i nun se bai a fazer. Stamos, por esso, bien loinje dua dança guerreira ou dua dança ritual, seia relegiosa ou nó.

L modo cumo la dança ye apersentada todo andica que nun serie de l coincimiento de las pessonas. La risa stá an que aqueilhas pessonas sabien que la spada era ua arma i nó para danças. Que nun serie coincida tira-se de la spresson «cousa muito pera ver». Assi i todo, Camões yá haberie oubido falar deilha, sabendo bien que era dançada por uito homes.

Esta referéncia de Camões a perpósito de la dança de spadas lhieba-mos a pensar na nuossa dança, ls dançadores (pauliteiros), que muita giente cunsidra cumo benindo de la dança de spadas. Essa dança, segundo alguns outores, yá serie mui antiga, sendo yá falada por Tácito an “De Germania” (António Maria MOURINHO, Cancioneiro, 453-511; 595-597). Mas nunca a esse respeito bi referido l nome de Camões.

“As danças de Espadas e de paus (paulitos), sendo só geralmente executadas por homens, a Igreja permitiu-as nas suas solenidades, segundo Luis de Hoyos, a partir do século X” (António Maria MOURINHO, Cancioneiro, 421). Diç que ye ua dança peninsular ou eibérica, menos ne l reino de Granada i que an algues regiones de Spanha era tamien beilada por rapazas (id. 458). Diç que l decumiento mais antigo de la Tierra de Miranda adonde se fala de la dança ye de l seclo XVII, de la Confraria de Santa Bárbara de Fonte Aldeia (p. 469).

Outras notas subre esta antroduçon al quelóquio de Camões: tamien l falar-se an El-rei D. Sancho ten oujetibos de fazer caçuada (“bailando os machatins”). Esse rei tamien entra an situaçones cómicas al menos nun lhaço de la dança mirandesa, «Don Rodrigo» (MOURINHO, Cancioneiro, 509); na fin las pessonas son cumbidadas a quemer, algo que, inda nun hai muito, tamien se passaba na fin de ls quelóquios mirandeses.

 

 

 

3. La moda de l Dongolondron

 

L Auto de ls Anfatriões, de Luís de Camões apersenta-mos a cierta altura la moda de l Dongolondron, Dongolondrera. Esta moda ye apersentada an castelhano:

 

Dongolondron con Dongolondrera

Por el camiño de Otera,

Rosas coge en la rosera

Dongolondron con Dongolondrera

 

Cuando yo vengo a pensar

Que uno matarme quisiera,

No hago sino temblar

Porque creo si muriera,

No pudiera mas cantar.

Porque estando a un rincon

De la casa adó quedé,

Sentí muy grande ronrón,

Y mirando, que miré?

Vi que era un gran ratón.

 

Ye l porsor Hernani Cidade an nota a la eidiçon desse auto (p. 31, nota), quien chama l'atençon pa la aparecéncia que la lhetra desta moda ten cula de la moda mirandesa de l Galandun. Cuido que el ten toda la rezon. La pregunta que se pon ye la seguinte: i que anteresse ten essa aparecéncia pa la cultura mirandesa?

Bamos por partes. Essa aparecéncia eisiste mesmo? Cuido que si ne l que ten a ber cun essa spresson, yá nó cul restro de la letra i nun sabemos cumo era beilada i se era beilada.

La palabra Dongolondron ye cumpuosta de Don + Golondron, tal cumo la palabra Dongolondrera yue cumpuosta porDon + Golondrera.

Ora, an mirandés, l que bemos ye que la palabra Don ye traduzida por Senhor, apersentando la outra palabra algues modeficaçones: Senhor + Galandun i Senhor + Galandaina. Mas tenemos outras bersiones de la cantiga an que mos aparécen las palabras Galandrun, Galandraina ou Galhandrun, Galhandraina. António Mourinho apersenta esta bersion cumo sendo de San Pedro de la Silba (MOURINHO, 1984):

 

“Sinhor Galhandrun!

Galhandrun del Galhandraina!”

 

Siempre oubi cantar esta moda an Sendin cula forma Galandrun. Segundo António Maria Mourinho serie ua moda raiana (MOURINHO, 1953), anque mais tarde mos apersente la bariante de San Pedro de la Silba. Acrecenta que “... a canção é nitidamente de origem espanhola ... É das mais típicas danças e canções que sobrevivem em terra de Miranda desde o século XVII ou XVIIII” (MOURINHO, 1984, 533)[vi].

Ye amportante dezir algo subre l modo cumo la moda era cantada i qual la funcion que era zampenhada pula spresson Galandun ou Galandrun. Mais ua beç diç António Maria Mourinho que las lhetras i ls “... trejeitos eram de fazer corar as pessoas...” Assi, dá-mos l’eideia de que l refran podie serbir para acumpanhar letras mui defrentes, que podien ser até andonadas pulas pessonas. L que mos lhieba outra beç a la moda de l quelóquio de Camões adonde parece zampenhar la mesma funcion, pus la letra de la moda ye de rir i sin sentido. La moda ye cantada por ua sola figura (Sósia) i nun mete dança.

António Mourinho pon la heipótese que la dança yá benira de l seclo XVII ou XVIII. Quanto a la dança nun sei, mas la moda nun benirá de antes desse tiempo pus yá parece ser coincida an Lisboua ende pul seclo XVI? Serie pul camino de la raia que essa cantiga antrou ou seria por outro camino que daba la buolta por Pertual, pus nin siempre l camino mais curto ye l lhieba menos tiempo? Seia cumo seia, bemos que ua moda aparecida yá ben al menos de l seclo XVI i era ousada por Camões nun de ls sous quelóquios.

 

 

Amadeu Ferreira

 

 



[i] Cumo diç Paul TEYSSIER (2005)  A Língua de Gil Vicente, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 15: “O teatro de Gil Vicente é sem dúvida o documento linguístico mais rico e mais variado de todos os que nos deixou o Portugal do século XVI”.

[ii] Para que nun se cuide que essa scuolha oubedece a rezones lhenguísticas speciales hai que dezir que oubedeciu mais a rezones culturales, ne l caso de ls quelóquios de Camões, i solo a rezones lhenguísticas – l caso de ls modos de tratamiento – ne l Auto de Dom André.

[iii] Cumo se fura ua prática de ls jesuítas, nessa altura coincidos por esse nome (H. Cidade, Auto dos Anfatriões, Introdução e notas, 83, nota).

[iv] CRUZ (2001, 55). Diç l outor a respeito de l’antroduçon a El Rei Seleuco: «Do ponto de vista do espectáculo, as cenas introdutórias do Seleuco ... dão luz aos hábitos da época, ao menos na expressão cortesã: amigos que juntam para celebrar umas bodas, e assistem, em casa de um deles, à representação de um «auto com grande fogueira» (...) Ora, talvez o mais feliz exemplo dessa conciliação medievo-renascentista seja El-Rei Seleuco» (p. 56).

[v] Yá l Cancioneiro de Garcia de Resende fazie ua referéncia a la dança de spadas: “[Pareceis] guia de dança d’espadas, / gram malassada d’estopas, / guia de dança de copas / todas cheas, arrasadas” (IV, 329-330). Segundo Aida Fernanda Dias (Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Dicionário (Comum, onomástico e toponímico), volume VI, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 223) esta dança antiga haberá antrado ne l folclore i sido zambolbida antre ls seclos XIV i XVIII. L que este testo acrecenta an relaçon al testo de Camões ye que alguns de ls dançadores se chamában guias, tal i qual cumo na dança de ls palos.

[vi] Algo de aparecido mos aparece ne l lhaço La Puonte (vd. António MOURINHO (1984) Cancioneiro e Danças Populares Mirandesas, 1º vol., Miranda do Douro: Por la puente de Digolondera, / De Dingolondan, / Veinte cinco ciguenhos van, / Fuera de la villa, / Fuera del lhugar, / Fuera de la feira / Y de lo anramar...”

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Sexta-feira, 18 de Fevereiro de 2011

L pertués na region de Miranda ne l seclo XVI: de lhéngua marginal a lhéngua anstitucional

 

 

[Este pequeinho studo corresponde a la 1.ª parte dua palhestra feita an Miranda de l Douro, ne l Cumbento de ls Frailes Trinos, an júlio de 2005, a cumbite de l dr. Domingos Raposo. Eiqui se deixa tai i qual cumo nessa altura fui apersentada, deixando-se bien claro l sou carátele datado.]

 

 

 

1. L mito de l eizolamiento de Miranda.

 

An 1545 Miranda de l Douro passou a ser sede dua nuoba diocese. Essa decison trouxo fondas modeficaçones pa la nuoba cidade, que agora nace. Nun cierto sentido, Miranda passa de bila na fin de Pertual i de l’arquidiocese de Braga a sítio dua nuoba centralidade, cun lhigaçones diretas al rei i a Roma. Na resume, passa a ser un centro de poder de adonde sálen leis, ordes, cun amanaças i cunsequenças para quien nun cumprir. L poder, que staba loinje, agora passa a quedar mais acerca, puis nun podemos squecer que un bispo era ua outoridade mui fuorte, an muita cousa que iba para alhá la relegion. Mas Miranda passou tamien a ser un centro de cultura, a bários nibles: acá passa a morar un númaro amportante de pessonas eilustradas, passa a tener scuolas abançadas, oumenta l númaro de pessonas que ban pa l’Ounibersidade i deilha bénen yá formados, bei nacer ua nuoba arquitetura pa la region, etc. An cunsequença de todo esso, ye tamien reforçado l papel melitar de Miranda que bei oumentar l’amportança de ls sous gobernadores melitares i l númaro de ls suldados acá stablecidos.

 

Esta rialidade stá inda pouco studada, anque algues puortas yá se hában abierto. Inda nun fui studada l’anfluença dessa nuoba situaçon de la cidade de Miranda de l Douro an relaçon a la lhéngua mirandesa, tirando l que screbiu José Leite de Vasconcellos subre l çtino que ende tubo la lhéngua mirandesa[i]. L que nun stá studada ye l’anfluença que essa nuoba situaçon de la cidade de Miranda tubo na lhéngua mirandesa eilha mesma, na sue strutura, ne l sou bocabulairo i noutros puntos que ténen que ber cula lhéngua eilha mesma. Claro que l porblema nun puode resumir-se a la lhéngua: hai que mirar ls nuobos modos de ber que parqui benírun, nuobas questumes, nuobos balores, nuobas eisigéncias subretodo relegiosas, nuoba arquitetura i até nuobos modelos sociales a eimitar.

Hai que poner un punto final nun mito que se scriou i que, a la falta de melhor, ten serbido de splicaçon para muita cousa: l mito de l eizolamiento de Miranda. Nesse mito cuntina a assentar la splicaçon mais quemun pa la suberbibéncia de la lhéngua mirandesa i l’eideia de que eilha poucas modeficaçones haberá sufrido até a la purmeira metade de seclo XX.

 

 

 

2. L pertués ampon-se cumo lhéngua anstitucional de la Tierra de Miranda

 

La question puode poner-se assi, an termos generales: até pul meio de l seclo XVI puode dezir-se que dominou an Miranda un paradigma castelhano-lhionés, l que oubriga a poner las relaçones frunteiriças i sues anfluenças cumo eissenciales; zdende para acá podemos dezir que passou a amponer-se, de modo creciente[ii], un paradigma pertués. Esse paradigma pertués assenta nun claro apartar de l uso de las lhénguas ousadas pulas pessonas: l pertués ampon-se defenitibamente cumo lhéngua anstitucional; l mirandés ye ampurrado para andrento la família i las relaçones antre la quemunidade; l castelhano i l lhionés [nesse tiempo inda mais achegado al mirandês] son ousado nas relaçones cul outro lhado de la frunteira, cunsantes essas relaçones fúran anstitucionales ou nó.

Quando digo que l pertués se ampon cumo lhéngua anstitucional, nun stou a querer dezir que esso solo agora acuntecisse. Nó, yá benie de trás. Mas la fraqueza de l pertués correspundie a la fraqueza de las anstituiçones[iii]. Agora bemos que las anstitutiçones se refórçan i pássan a tener un papel mais atibo, chegando muito mais a la bida de las pessonas que móran nas aldés i nun quedando solo pula cidade, cumo se passaba até ende. L que agora se zeinha i ampon, de modo mui claro, ye a modo un tratado de Tordesilhas lhenguístico.

Cumo lhéngua anstitucional, la lhéngua pertuesa passa a adominar todas las anstituiçones: políticas, religiosas i culturales. Sendo la sola lhéngua de l poder, l mirandés solo le deixa al mirandés ls spácios adonde nun ten meios para anterbenir. Esta nuoba situaçon ten cunsequéncias pala lhéngua mirandesa, anque nun téngamos andicaçones diretas quanto al que se haberá passado. Assi, pon-se l porblema de saber se, al menos andiretamente, podemos abançar algue cousa i que camino seguir.

Un camino possible ye buscar las nuobas situaçones anstitucionales que poderien tener anfluéncia nas aldés ou na giente de l campo i que palabras le poderien correspunder: ansinar a rezar ‘em lingoagem’ passa a ser ua berdadeira cruzada, an que ls faltosos son cuntrolados i pássan mesmo a pagar multas; ls besitadores de ls bispos son rigorosos, andando siempre anriba de ls padres de las aldés i begiando l cumportamiento de las pessonas; ls nuobos padres letrados de la cidade habien de querer quien le oubira ls sermones pulas aldés, nas fiestas, dies santos i subretodo na Quaresma;  la giente que ben de la cidade passa a ser l nuobo modelo de las aspiraçones de ls lhabradores mais ricos de l campo[iv]. Sabemos que l paradigma de cultura i questumes dessa giente letrada ben de la corte i ye por mano dessa giente que chega até la tierra de Miranda i ten anfluença an toda la bida de las pessonas i tamien na sue lhéngua. Zdende, la lhéngua mirandesa queda assujeita a ua presson nuoba, la presson de la lhéngua pertuesa: ye ende que, possiblemente, bai ganhando fuorça l’eideia de fala stranha i charra, caçurra[v]; ye zdende que l pertués se ampeça a amponer cumo modelo de lhéngua; ye zdende que l’anfluença de la lhéngua pertuesa passa a ser fuorte i permanente.

 

 

 

3. L Renacimiento / Houmanismo i las streformaçones lhenguísticas

 

Ye sabido que, por esta altura, la lhéngua pertuesa passa por grandes streformaçones debido al mobimiento coincido cumo Houmanismo / Renacimiento. Son miles las palabras nuobas que bénen a la lhéngua, subretodo de l lhatin, la lhiteratura ten un zambolbimiento einorme apersentando nuobas formas lhiterárias, i l pertués apersenta-se defenitibamente cumo lhéngua de cultura, arremansando las falas populares pa l cesto de las cousas de giente atrasada i anculta.

Esse mobimiento que se dou na lhéngua pertuesa i noutras lhénguas de l tiempo nun chegou, diretamente, a la lhéngua mirandesa. Mas chegou a la Tierra de Miranda i a las pessonas que eiqui passórun a bibir, por bias de las anstituiçones que eiqui funcionában i se amponien a las pessonas. Esso quier dezir que, na sue fala de l die a die, ls mirandeses tubírun necidade de: dar nome a rialiades nuobas i bariadas que chegában a Miranda, zde las cousas mais solenes até cousas tan simples cumo ls nuobos bestidos; passórun a oubir falar l pertués mais do que stában aquestumados, por cierto aceitando nuobas palabras que nun coincien; oubindo pernunciar las palabras de nuobas maneiras; sendo oubrigados a formas de tratamiento an relaçon a tanta giente amportante que porqui se passeaba; oubindo nuobas cantigas, bendo nuobas danças, oubindo nuobos remanses i poemas, etc. Criou-se, assi, a modo un corredor que premitie l cuntato antre las dues lhénguas i l antendimiento de las pessonas an relaçon a la lhéngua pertuesa.

Possiblemente yá se falarie porqui un pertués que tenerie aparecéncias cul de las tierras alredror, mas que serie el tamien lhemitado an bocabulairo i inda cun fondas anfluéncias lhionesas[vi]. Portanto, tamien esse pertués nun starie purparado para dezir la nuoba rialidade que se habie criado. Esso quier dezir que muitas de las anfluéncias de l pertués ne l mirandés, que se dan por essa altura, nun bénen pul camino de l pertués popular, mas pul camino de l pertués de las classes mais cultas, l pertués ousado pulas anstituiçones i pulas pessonas que stában eilhi a la frente deilhas i, al menos an parte, habie de tener a ber cul pertués falado na corte i na Coimbra. Assi, puode-se dezir que aquel mobimiento de l Renacimiento tubo ua anfluéncia na lhéngua mirandesa, anque de modo andireto i solo lhemitado a algues situaçones: pongo la heipótese de nessa altura habéren antrado na lhéngua mirandesa muita palabra de l pertués culto, talbeç tamien alguns modo de pernunciar, talbeç alguns modos de tratamiento. Cuido que essas anfluéncias poderan haber streformado, an buona medida, l mirandés que eiqui se falaba, subretodo quanto al bocabulairo ousado, anque me pareça que la strutura de la lhéngua nun tenga tubido altaraçones de fondo. Muitas dessas palabras yá nun se úsan hoije an pertués i passórun a fazer parte de l património de l bocabulairo mirandés, podendo dezir-se que son palabras mirandesas.

 

 

 

4. Ua nuoba lheitura de las ouserbaçones de Severim de Faria: l bilhenguismo de ls mirandeses

 

Bistas las cousas deste modo cuido que ye possible fazer ua outra lheitura de las notas que Severim de Faria mos deixou subre la lhéngua mirandesa[vii]. L eissencial a dezir, pa l que agora mos anteressa, ye l seguinte:

a) L’oupenion que Severim de Faria mos trasmite subre la lhéngua mirandesa corresponde nó a ua análeze que houbira feito el mesmo, pus nun tubo tiempo para tanto an uito dies que alhá stubo, mas era l’oupenion que le fui transmitida pula la classe derigente, subretodo l clero, de l bispado de Miranda;

b) Mais do que de la cidade, el trata de la lhéngua que se fala na Tierra de Miranda[viii];

c) Queda claro que l mirandés era cunsiderado cumo outra lhéngua defrente de l pertués i de l castelhano, las lhénguas cunsidradas ‘cultas’ al tiempo, al punto de assentar essas defrenças an defrentes ouriges i pobos[ix];

d) Tanto Severim de Faria cumo la classe derigente de l bispado de Miranda éran pessonas cultas, que coincien bien l pertués i l castelhano, para alhá de l lhatin i de l griego. Ora ye de spantar que la lhéngua mirandesa le traísse tanta stranheza se fusse l que ye hoije ou mesmo la lhéngua que J. Leite de Vasconcellos mos çcrebiu que eisistie na fin de l seclo XIX. Habie de ser ua lhéngua cun amportantes defréncias tanto de l castelhano cumo de l pertués[x] a puntos de a eilhes le aparecer cumo un einigma que solo se podie splicar nó por ser qualquiera outra lhéngua mal falada, mas pulas sues ouriges i pulas caratelísticas de l pobo que la falaba. Éran bastante bien coincidas al tiempo las defréncias antre la lhéngua pertuesa falada pulas classes cultas i la lhéngua popular[xi].

e) Parece poder dezir-se que, nesse tiempo, ls mirandeses de las aldés inda nun éran berdadeiramente bilhingues i que l pertués solo zdende se haberá zambolbido. Ye sabido que ls mirandeses solo fálan l mirandés antre eilhes i nó cula giente de fuora nin cula giente que pertence a ua classe social defrente. Ora parece poder cuncluir-se de las afirmaçones de Severim de Faria que eilhes inda falában subretodo na sue lhéngua cun to la giente i, se lo fazien, era porque outra inda nun la coincerien bien. Al modo que l bilhenguismo se zambuolbe tamien las trocas antre las dues lhénguas ban ganhando cuorpo, nun solo de l pertués pa l mirandés, mas tamien de l mirandés pa l pertués falado na region de Miranda.

Ora zdende l mirandés tenerá benido a ancorporar muitas anfluéncias de l pertués, que teneran ampeçado ne l seclo XVI i se teneran zambolbido ne ls tiempos a seguir, subretodo anquanto Miranda mantubo l sou poder de centro político, religioso i cultural.

Mas l mesmo se passou cul pertués falado na region: ye un pertués cheno de lhionesismos, nun solo ne l bocabulairo cumo na fonética i na sintace.

Todas estas afirmaçones ban a eisigir nuobos studos, cun temas bien specíficos, mas esso queda para outra altura.

 

 

Amadeu Ferreira



[i] Assi i todo ye J. Leite de Vasconcellos quien mos dá ua eideia mais clara de la nuoba rialidade de Miranda de l Douro apuis de passar a sede de bispado i a cidade (Estudos de Philologia Mirandesa, 2 volumes, Lisboa, 1900 / 1901, pp. 128-146). Diç el an resume: “Como consequencia dos titulos de séde de bispado, e de cidade, attribuidos à sua patria, grandes modificações se introduziram na vida dos Mirandenses. De toda a parte chegaram empregados de differentes categorias, para se juntarem aos que Miranda já possuia na qualidade de villa e de praça de armas; organizaram-se estudos litterarios; criaram-se instituições que d’antes não existiam” (id., 130). I mais: “Os novos empregados que affluiam a Miranda eram pela maior parte, como se vê, pessoas de certa instrucção, que não desciam a fallar mirandês, e que pelo contrario o vinham directa ou indirectamente atacar.” Mas Vasconcellos bei todo pul lhado de la fin de la lhéngua mirandesa na cidade de Miranda i nun bei las nuobas anfluencias cumo algo que muda l mirandés de las aldés i assi cuntribui pa la sue mudança i zambolbimiento: “Quando os bispos fossem intelligentes e instruídos, deviam rodear-se de pessoas igualmente cultas, que acompanhavam, de proposito ou não, o trabalho da demolição linguística” [eitálico miu]. (id,. 137). I cunclui: “... a revolução intellectual a que a cima me refiro era tamanha, que até já da Terra-de-Miranda saíam escritores!” (id,. 139).

Inda hai pouco tiempo apersentei ua outra maneira de ber las cousas an relaçon al porblema de l mirandés na cidade de Miranda (FERREIRA, 2004).

[ii] Digo “creciente” pus las cousas lhebórun l sou tiempo a alhargar, mas tamien porque antre 1580 i 1640 Pertual stubo ounido a Spanha i, por fin, alguns bispos i outras gientes que andubírun por Miranda éran castelhanos.

[iii] La lhéngua pertuesa era la lhéngua de ls repersentantes de l rei, que solo anterbenien an atos formales, cumo era l caso de ls notairos i solo na fin de seclo XIII mos aparece un decumiento an pertués, screbido an Miranda pul notairo de l rei; era la lhéngua de ls repersentantes a las cortes; era la lhéngua de ls juízes; yá an relaçon a l’eigreija, anque nun téngamos dados ye de poner an dúbeda que l pertués fura la sola lhéngua ousada ou até la mais ousada.

[iv] Para alhá de ls nomes apuntados por J. Leite de Vasconcellos, hai que acrecentar l houmanista Diogo de Teive, que ansinou an bárias ouniberdades francesas i an Coimbra i fui reitor de l Coleijo de las Artes. Fui cundanado pula Anquesiçon i acabou por passar la fin de sue bida an Miranda, culas rendas de la Abadie de Bilachana (Vd. Artur Carlos Alves, Cadernos Históricos Mirandeses. I. Retalhos de História, 1971, Miranda do Douro, 18-19). I muitos outros haberá.

[v] Esso queda bien claro na eideia que Severim de Faria mos deixa de la lhéngua mirandesa, assente na oupenion de l clero que bibie na cidade de Miranda de l Douro, alredror de l bispo.

[vi] Digo “possiblemente” porque ls outores que stúdan estas cousas, al apersentar l mapa de l pertués i las sues bariadades, déixan siempre de fuora la region adonde se fala mirandés, nun dando amportança a que las pessonas son eilhi bilhingues i que l pertués que eilhas fálan tamien ye ua bariadade de l pertués, mui aparecido ou armano al pertués stramuntano de las tierras mais acerca. La berdade ye que nun se sabe al cierto quando ye que ls mirandeses teneran ampeçado a ser bilhingues.

[vii] Diç Severim de Faria quanto a las caratelísticas de la lhéngua: “Falão mal, se os compararmos com a lingoagem de hoje politica, porque, alem de usarem de alguas palavras antigas, pronuncião os vocabulos com grande pressa, fazendo sómente accentos agudos e prolongos na primeira e ultima siliba da dicção...”.

[viii] Anque Vasconcellos diga (ib., 112): “note-se que o A. está tratando, não da gente dos arredores, mas da própria cidade).”

[ix] J. L. de Vasconcellos nun dá amportança a estas ouserbaçones de Severim de Faria, pus diç: “O autor acrescentou erradamente que este modo de pronunciar provinha dos Suevos e Godos, e de outras populações do Norte que habitaram em Tras-os-Montes. Pondo de parte a última afirmação, puramente subjectiva, e que é inadmissível, vemos que a notícia de Severim de faria encerra, no seu laconismo e na sua imperfeita enunciação, as tres seguintes proposições, que hão de corresponder a factos reaes: 1ª) que no vocabulario do povo de Miranda havia nos princípios do seculo XVII alguns archaismos; 2ª) que a pronuncia dos vocabulos se caracterizava pela rapidez; 3ª) e pela acentuação das syllabas extremas”. Mas, mais alantre, acaba por cuncluir: “... o nosso auctor tinha de tal modo consciencia das particularidades do mirandês, e estas impressionavam-no tanto, que elle chegou a determinar-lhes uma base histórica, posto que falsa: influencia da lingua dos povos do Norte!” (ib.., 120).

[x] L mesmo J. Leite de Vasconcellos (ib., 118) diç an comentairo a las ouserbaçones de Severim de Faria: “D’aqui devemos concluir que a lingoagem de Miranda continha bastantes particularidades, e que por isso, attentas as razões expostas no decurso d’este capitulo, não era outra senão o mirandês”.

[xi] Esse ye assunto tratado por bários outores, subretodo an quelóquios, cumo fui l caso de Gil Vicente i outros. Mas tamien ls studiosos de la gramáticas apúntan las percipales defréncias de la fala de cada region i la fala de las classes mais cultas de Lisboa, cumo ye l caso de Fernão de Oliveira (1536), de João de Barros (1540) e de Duarte Nunes de Leão (1576). Para un resume dessas posiçones vd. CASTRO Curso de História da Língua Portuguesa, Lisboa, Universidade Aberta 1991, pp. 39-42.

 

 

 

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